*Por Francis Ivanovich:

Sócrates, antes de morrer, conta seu discípulo Platão, que o filósofo, ao beber a cicuta, disse aos que o acusavam de corromper a juventude e atentar contra os deuses gregos: “E agora chegou a hora de nós irmos, eu para morrer, vós para viver; quem de nós ficará com a melhor parte, ninguém sabe, exceto os deuses”.

De certa forma, todos nós também morreremos envenenados. Senão pela cicuta, provavelmente por causa de uma enfermidade, um acidente, assassinados, ou por um acúmulo de sentimentos que nos envenenam, a conta-gotas, como o ódio, a mágoa, a raiva. “A raiva é um veneno que bebemos esperando que os outros morram”, disse o dramaturgo Shakespeare.

O veneno é uma metáfora visceral. Pode representar algo muito além da possibilidade da morte; pode significar muito bem uma sociedade adoecida, que está se envenenando lentamente, em direção à própria destruição. O que assistimos, aterrorizados, no Rio Grande do Sul, é um explícito caso de envenenamento. Estamos nos matando, ao matar o próprio planeta, com nossa ganância, ignorância, e soberba.

No Teatro SESI Firjan, no Centro do Rio, uma região envenenada pelo abandono, descaso, e incompetência do poder público municipal, me deparo com a intrigante montagem brasileira de “O Veneno do Teatro” (El verí del teatre), dramaturgia primorosa do valenciano Rodolf Sirera Turó, atualmente com 76 anos, a mesma idade do ator Osmar Prado, que está em cena ao lado de Maurício Machado, também um dos produtores do espetáculo.

Rodolf Sirera Turó. (Foto El Diario)

Pelo que pude observar, pesquisando as montagens da peça em Espanha, a montagem brasileira, dirigida por Eduardo Figueiredo, não deve em nada, pelo contrário, é até mais interessante.

Somente um ator do calibre de Osmar Prado daria conta de um texto tão denso, fruto de uma época, em que o teatro ainda era praticamente ditado pela palavra que guiava a ação, o texto foi escrito em 1978. No entanto, Osmar e Maurício, conseguem um resultado cênico genuíno, dão contemporaneidade ao texto, com interpretações que se confrontam e, ao mesmo tempo, se complementam, produzindo estranhamento e distanciamento.

Os atores conseguem tal efeito, graças a capacidade de se comunicarem com o público, com suas personalidades fortes enquanto atores, sacudindo a plateia para não somente testemunharem, mas participarem efetivamente da trama macabra, como se plateia fosse uma espécie de servo, criado a serviço de um patrão desumano, um déspota dos mais desprezíveis.

O resultado é realmente eficaz, em tempos de redes sociais, e precariedade no uso da língua, do idioma, em tempos de KKK. Somos atraídos para dentro da trama, sem perder a capacidade de pensar sobre o que ocorre em cena. As atuações de Osmar e Maurício contribuem decisivamente para isso. Não foi por acaso, que o ator Maurício Machado, ao final da apresentação, elogiou e agradeceu a concentração do público.

Outro mérito do espetáculo é confrontar a plateia com o seu próprio voyeurismo venenoso. Esse veneno que entra pelos olhos, quando somos diariamente intimados a observar e compartilhar a violência, a desgraça, a mentira, o preconceito, e o ódio. O espetáculo denuncia a nossa cumplicidade em aceitar passivamente a espetacularização de genocídios contra a dignidade humana e a natureza. Somos o Marquês que contrata atores para satisfazer o Eros e o Tânatos, nossa fome e sede por carne e sangue de outro ser humano.

O Espetáculo “O Veneno do Teatro” é muito mais do que uma simples trama diabólica, em que um Marquês convida um ator vaidoso para interpretar uma cena fatal; muito mais que demonstrar como estamos cercados por sociopatas ou psicopatas, ou falar sobre as máscaras sociais que vestimos diante do espelho.

Ao meu ver, o Veneno do Teatro é testemunho vivo de como somos capazes de alçar ao poder pessoas que irão nos envenenar, destruir, durante uma pandemia, ou aos poucos, tornando o ar irrespirável, as águas sujas, a Terra inteira seca, criando o cenário perfeito para a morte. O espetáculo nos coloca uma questão crucial. Seremos atores da nossa própria vida ou continuaremos marionetes nas mãos de manipuladores e assassinos?

O Veneno do Teatro é um espetáculo que merece atenção, pois discute a nossa própria sobrevivência, pois estamos sendo envenenados, a todo o instante.

Questão premente e permanente.

*Francis Ivanovich é jornalista, dramaturgo e cineasta, criador e diretor do Prêmio Nacional de Dramaturgia Flávio Migliaccio, e editor geral do Notícias do Teatro.

(Foto: Divulgação)


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