Por Wilson Coêlho:

Tendo ido à Cuba lançar meu romance “Nosotros”, na Feria Internacional del Libro de La Habana, pude gozar da apresentação de “O grande disparo da arte” (El gran disparo del arte), obra escrita e dirigida por Agnieska Hernández, na Sala Tito Junco do Complexo Cultural Bertolt Brecht de Havana, aos 9 de fevereiro de 2020, um domingo, às 5 horas da tarde.

A sala estava repleta dos mais diversos espectadores, estudantes, artistas, professores e público em geral. A princípio, como espectador que já havia assistido diversas obras de grupos teatrais cubanos, como a Cia Teatral Rita Montaner, Teatro Los Buendía, Teatro Mío e alguns outros, fiquei um pouco apreensivo, embora acreditasse que algo interessante se daria ali naquele espaço. Ao entrar, já era possível ver o palco e a cenografia não me deu muitas referências, não somente pela simplicidade, mas por elementos que de imediato não me fizeram situar no tempo e no espaço, considerando que havia um piano, alguns tambores de percussão, um telão, pedestais e microfones, além de uma espécie de piscina de plástico e diversos galões de água.

De certa forma, eu experimentava um processo de construção em que me senti parte pelo sentido do estranhamento. Começou o espetáculo que, na primeira mirada, me remetia a uma performance e, de acordo com a sucessão de cenas em que os atores foram assumindo seus papeis, num misto de discurso e interpretação, fui me integrando à obra quase como num ritual, na medida em que os personagens, por não serem estáticos e pré-definidos foram se compondo de acordo com suas falas.

Em termos de ritual, aos poucos “El gran disparo del arte” foi se afirmando como uma obra que, apesar dos recursos do experimental, estabelecia um rico diálogo com o próprio processo de criação, não somente como o teatro no teatro, mas como um processo de criação artística no sentido muito mais amplo onde a ficção e a realidade se davam como dois lados da mesma moeda para uma reflexão tanto existencialista, no que diz respeito ao indivíduo, quanto da criação no mundo da arte, considerando as profundas marcas da realidade que nos sangram na medida em que tentamos dar sentido ao mundo. Assim como a realidade, a obra nos desvela um universo fragmentado entre o que somos e o que pensamos ser, o que fazemos e o significado do nosso fazer na arte e no cotidiano. E isso não está separado.

Interessante também ressaltar a linguagem do espetáculo que se utiliza do vernáculo clássico da língua espanhola-cubana, ao mesmo tempo em que explora o popular, repetindo frases e jargões da atualidade, promovendo uma busca do essencial na possibilidade de comunicação sem excluir nenhuma das partes que compõem a realidade de seu país. Assustador e surpreendente estar diante de atores como César Domínguez, Amalia Gaute, Edgar Valle, Amelia Fernández e Pedro Rojas que, assim como a dramaturga e diretora Agnieska Hernández, embora tão jovens, sustentam os arquétipos capazes de colocar os espectadores, independentemente de suas faixas etárias, diante da mesma questão que é a necessidade de por a realidade em questão, bem como perguntar pelo papel da arte como protagonista para realizar a compreensão do mundo.

No decorrer da obra, o piano, os tambores de percussão, o telão, os pedestais e os microfones, além da piscina de plástico e diversos galões de água vão se impondo e demonstrando ao que vieram. Não se trata de uma mera cenografia ou adereços e, tampouco, elementos para compor uma cena ou um fundo musical para a cena. São personagens que se insurgem com a voz de uma verdade engasgada na história dos vencedores. Os atores se apropriam dos elementos para que eles se façam de vulcões na erupção das palavras. O piano revela um subterrâneo da música mundialmente conhecida pelos meios de comunicação e que encantaram metade do mundo, assim como composições próprias, os tambores de percussão despertam e inserem a cultura dos dominados como uma forma de demonstração da universalidade da arte e a resistência dos excluídos no cenário internacional, ao mesmo tempo que os microfones abrem espaço para que a voz da rebeldia se revele. Mas o mais interessante é como esses elementos são utilizados para a questão central da montagem. O que é uma obra de arte?

Nesse momento crucial em busca de uma resposta, “El gran disparo del arte” remete-se aos exemplos que temos da relação da obra de arte e a realidade, tanto dos artistas quanto dos temas que eles exploram. Na galeria desses artistas, estão Marcel Duchamp, Vincent van Gogh, Edvard Munch, Piero Manzoni, Marina Abramović e alguns outros. A obra coloca em questão a perversidade dos mecanismos do mercado das obras no sistema capitalistas e as condições de vida de seus autores. Todos esses artistas são mencionados como um pretexto para discutir um tema que, inclusive, justifica o tema da obra: o grande disparo. Mas tudo isso como uma tentativa de dar espaço para as leituras subjetivas a partir das figuras de linguagem, ou seja, colocar em cena uma forma de entender que a afirmação da história como verdadeira ou que a cena é ótima equivale a dizer que o silêncio é ensurdecedor. Mas independente das subjetividades e as possiblidades de cada espectador entender à sua maneira, me parece que a proposta de Agnieska Hernández é pensar que fazer arte é como apertar o gatilho de uma metralhadora para disparar ideias de questionamentos.

Não é por acaso que o tema central da obra é a famosa fotografia do sul-africano Kevin Carter “Starving Child and Vulture” (Criança Faminta e Abutre), retratando a fome no Sudão e que, quatro meses antes de sua morte, de seu suicídio asfixiado por monóxido de carbono, ganhou um Prémio Pulitzer em 1993. Aos 27 de julho de 1994, com 33 anos de idade, pouco antes de morrer, Kevin Carter escreveu uma nota: “Sinto muito, de verdade. A dor da vida supera a felicidade a tal ponto que a felicidade já não existe”.

O debate sobre a arte, em especial essa foto de Kevin Carter, abre uma ferida no próprio conceito de arte e sua forma de atuação. Em princípio, podemos pensar na filosofia da arte de Hegel, à qual ainda hoje se costuma atribuir a tese sobre a morte da arte. Depois, em Heidegger, pensa-la como uma busca pela sua origem e sua visão para além da estética. E, ainda, em Marx, quando afirma que o regime capitalista não é propício à arte como um processo de criação, na medida em que ele só a admite quando se dá como um bom investimento ou embelezamento do sistema. Mas também temos o grande incômodo de Adorno em sua polêmica frase de que “Escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de por que hoje se tonou impossível escrever poemas”.

Assim, em meio a esse turbilhão de questionamentos, o “O grande disparo da arte” se transforma numa metáfora entre disparar o gatilho de uma metralhadora, ou o de um poema, o de uma obra teatral e o de uma câmera fotográfica como arte colocando a vida como o alvo em questão.

Enfim, explorando o documentário, a estrutura fragmentada, descontínua e atemporal, numa pesquisa entre o aleatório, a ficção e a aparente realidade, “O grande disparo da arte” põe em xeque a arte que fazemos à serviço de uma vontade de dizer da vida e, ao mesmo tempo, enfrentando a grande borbulha do mercado, considerando que a arte não se trata de um produto acabado e que deve incomodar. Perguntando o porquê da Arte que não se compromete com os que não sabem nada de Arte, com a consciência de que a Arte não pode explicar num dia o que foi necessário anos para aprender o que é a Arte. Tendo a plena certeza de que a Arte não se cala e que não cabe em uma única página, pois ela é construída de contradições.

*Wilson Coêlho é poeta, tradutor, palestrante, dramaturgo, escritor com 27 livros publicados, assina a direção de 28 espetáculos montados com o Grupo Tarahumaras de Teatro, licenciado e bacharel em Filosofia e Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Espírito Santo, Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense e “Auditor Real” do Collège de Pataphysique de Paris.


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